A etiologia da depressão
A depressão é conhecida como a patologia do século XXI, é sabido que o que chamamos de modernidade, por diversos fatores, produz psicopatologias em grande escala, mas, é a depressão uma criação da modernidade?
Se concluiu que não, você acertou. A depressão é uma patologia que afeta severamente o humor do sujeito e as primeiras descrições de estados de alteração do humor podem ser encontradas nas escrituras bíblicas e na mitologia. A visão pré-socrática do homem, compartilhada de modo geral por gregos, hebreus, egípcios, babilônios e persas, compreendia o adoecimento físico e mental a partir de uma narrativa mítica e religiosa, atribuindo a uma entidade divina a etiologia de todos os males (Souza, T.R, Lacerda, A.L.T 2013
A primeira vez que o termo depressão foi usado data de 1960, era usado para denominar quadros de tristeza, perda de interesse ou desânimo. Foi adicionado ao dicionário em 1750 por Samuel Johnson. Embora o termo seja relativamente novo a depressão não é.
O desenvolvimento do conceito de depressão emergiu com o declínio das crenças mágicas e supersticiosas que fundamentavam o entendimento dos transtornos mentais até então. Desse modo, a história do conceito de depressão tal como o concebemos na atualidade tem seu início no século XVII. Entretanto, sua origem pode ser inferida a partir das menções de alterações de humor ao longo da história, sobretudo nas referências ao estado conhecido como melancolia (Souza, T.R, Lacerda, A.L.T 2013)
As fontes históricas situam no canto VI da Ilíada de Homero (versos 200-203), pela descrição dos sofrimentos de seu herói Belerofonte - condenado pelo ódio dos deuses a vaguear solitário na planície de Aleão, submergido no desespero e solidão -, uma das primeiras análises desse mal-estar que atravessou os tempos e se faz tão presente na atualidade. Também é de Homero a primeira referência ao pharmakon, medicamento produzido pelo homem, mistura de plantas e rituais, visando aliviar um sofrimento que teve sua origem na ação divina. (Peres, U.T. 2010 P 13,14)
No século II a.C., Galeno acreditava que o comportamento era influenciado pelo desequilíbrio de quatro líquidos presentes no corpo: bílis negra, bílis amarela, fleuma e sangue. Afirmava que o elevado nível de bílis negra levaria à melancolia, o aumento de bílis amarela seria responsável pela ansiedade, assim como o excesso de fleuma estaria associado ao temperamento preguiçoso e o de sangue às oscilações rápidas de humor. Com esse entendimento, no intuito de eliminar o excesso de bílis negra, o tratamento do paciente melancólico era feito com sangria, laxativos e vomitórios, o que levava muitos pacientes à morte por desidratação. (Teodoro, W. L.G.T.2010 p32)
Hipócrates século IV a. C, considerado o pai da medicina, foi o primeiro a buscar na ciência explicações para o adoecimento.
[...] a teoria de Hipócrates domina: quatro humores, a que correspondem a bílis negra, a amarela, o sangue e a pituíta. As doenças decorrem das variações e do equilíbrio entre essas quatro substâncias. A melancolia recebe, então, a sua denominação da bílis negra cuja alteração quantitativa ou qualitativa produz o quadro melancólico, caracterizado pelo medo e pela tristeza. Aos quatro humores podem se associar as quatro qualidades - seco, úmido, quente, frio -, as quatro estações, as quatro direções do espaço e ainda as quatro etapas da vida, formando uma verdadeira teoria cosmológica. (Peres, U.T. 2010 P 14).
[...] Hipócrates formulou a primeira classificação noológica dos transtornos mentais registrada na história: descreveu e nomeou a melancolia, a mania e a paranoia. A etimologia do termo melancolia – melan significa negro, e cholis, bile –, revela a visão de Hipócrates: o quadro clínico da melancolia – em que se observava aversão à comida, falta de ânimo, inquietação, irritabilidade, medo ou tristeza que perduravam por longo período – seria resultante de uma intoxicação do cérebro pela bile negra. (Souza, T.R, Lacerda, A.L.T 2013)
Ainda no século IV antes de cristo, a noção de melancolia é revolucionada pelo Problema XXX 1. Trata-se de uma monografia sobre a bílis negra, que é atribuída a Aristóteles. Aristóteles define a melancolia como um estado originário da bílis negra que corresponde aos homens de exceção, aos homens que são considerados gênios. Todos os que têm sido homens de exceção, os filósofos, os poetas, os artistas, são manifestamente melancólicos. Eles têm uma propensão a seguir a imaginação que é inseparável da memória. Desta forma, a partir de Aristóteles a melancolia é associada à imaginação (Klibansky, Panofsky & Saxl, 1964/1989; Prigent, 2005 apud Mendes, at al, 2014, Vol. 30 n. 4, pp. 423-431)
No século I da era cristã, o médico grego Areteu da Capadócia teve marcante participação no entendimento dos quadros depressivos. Foi ele o autor dos principais textos que trouxeram à atualidade a ideia de uma unidade da doença maníaco-depressiva, apontando a mania como resultado do agravamento do quadro de melancolia. (Teodoro, W. L.G.T.2010 p32,33)
No século V (476 d.C.), ocorreu a queda do Império Romano do Ocidente, marcando o fim da Antiguidade e o início da Idade Média. O pensamento greco-romano, incluindo as suas contribuições para a ciência e para a medicina, é abandonado e substituído por uma visão religiosa edificada sobre a ubiquidade de uma entidade divina e um modelo maniqueísta. Os transtornos mentais passam a ser inseridos na demonologia da época. O monge Ionnes Cassianus introduz o termo acídia, palavra de origem grega que significa “estado de descuido”, para designar estados variados de apatia, preguiça, indolência, negligência e enfraquecimento, de modo que essa palavra pode ser considerada um termo medieval para a melancolia. (Souza, T.R, Lacerda, A.L.T 2013)
Do Século V ao XV na Idade Média (500 – 1500 da era cristã), a forte influência religiosa na Europa fez com que as abordagens naturalistas fossem abandonadas e ressurgissem antigas crenças sobre a possessão demoníaca e o uso de tratamentos exorcistas para os transtornos mentais. (Teodoro, W. L.G.T.2010 p33)
Nos séculos XVI, XVII e XVIII, período que corresponde ao classicismo, para Michel Foucault, produz-se uma passagem de uma causalidade sustentada pelas substâncias - ainda a teoria dos humores - para uma causalidade das qualidades. Surge a noção de uma transmissão da qualidade do corpo para a alma, do humor para as ideias, dos órgãos para o comportamento. No século XVIII, a análise da melancolia está cada vez mais dirigida para a ênfase nas qualidades - solidão, inibição, amargura e tristeza. (Peres, U.T. 2010 p17)
Por volta do século XIII, a Igreja católica passa a considerar a melancolia como um pecado, revelando uma fraqueza moral diante das vicissitudes da vida. Durante o período da escravidão no Brasil, os negros, na condição de isolados de suas pátrias e famílias e privados de sua liberdade, eram acometidos por uma intensa e mortal nostalgia denominada “banzo”. Certamente, experimentavam a depressão. (Teodoro, W. L.G.T.2010 p 33)
No final do século XVIII a melancolia é traduzida como “o grande sintoma do tédio destilado pela velha sociedade” (Roudinesco, 1997, p. 506). A partir do século XIX a melancolia é instaurada como verdadeira doença mental. (Esteves, F.C, Galvan, A.L. 2016)
O século XIX fecha terminantemente a teoria dos humores, e nesse movimento de repúdio a designação de melancolia também perde terreno. Surge a expressão "monomania triste'’, ou "lipemania’'. A psiquiatria mantém uma ênfase na psicose maníaco-depressiva que recebe de Emil Kraepelin a descrição mais completa do quadro clínico; uma alternância de acessos maníacos (podendo atingir uma dimensão delirante) e acessos depressivos. Formas mais leves podem apresentar uma baixa de humor e inibição psíquica. O primeiro Compêndio de psiquiatria de Kraepelin aparecem 1883 e durante todo o fim do século XIX e primeira metade do século XX sofre revisões, terminando por constituir uma obra de duas mil e quinhentas páginas. (Peres, U.T. 2010 p18)
Freud, em 1917, publica “Luto e Melancolia” conceituando a melancolia como forma patológica do luto. No mesmo século XX, a depressão é classificada como transtorno afetivo levando em conta seus aspectos neuroquímicos, psicossociais e genéticos (Stone, 1999). Karl Abraham foi um dos estudiosos que publicou diversos artigos sobre a então chamada psicose maníaco-depressiva, seus primeiros trabalhos marcaram o início da escola kleiniana acentuando “a problemática da perda do objeto e da posição depressiva inscrita no âmago da realidade psíquica” (Roudinesco, 1997, p. 507). No final do século XX, a depressão passa a ser considerada como forma atenuada da melancolia a qual domina a subjetividade contemporânea (Roudinesco, 2000). (Esteves, F.C, Galvan, A.L. (2016)
Na contemporaneidade, o aumento dos diagnósticos de depressão parece sinalizar um descompasso entre as exigências sociais como a valorização da hiperatividade e do consumo desenfreado e a necessidade de tempo necessária para a elaboração psíquica. Na nossa sociedade nos deparamos com uma cultura que supervaloriza o individualismo, o consumo, o culto ao corpo e o mundo das imagens, o que propicia o surgimento das patologias narcísicas. Assim como a melancolia foi uma forma de expressão do mal-estar no século XIX, a depressão tem sido considerada o mal-estar do século XXI (Mendes, at al, 2014)
REFERÊNCIAS:
Esteves, F.C, Galvan, A.L. (2016). Depressão numa contextualização contemporânea.
Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/aletheia/n24/n24a12.pdf
Souza, T.R, Lacerda, A.L.T. (2013). Depressão ao longo da história.
Disponível em://www.larpsi.com.br/media/mconnect_uploadfiles/c/a/cap_01_72_.pdf
Peres, U.T. (2010). Depressão e melancolia - 3.ed. Jorge Zahar Rio de Janeiro
Teodoro, W. L.G.T. (2010). Depressão: corpo, mente e alma. Minas Gerais
Mendes, E.D. Viana, T.C. Bara, O. (2014). Melancolia e Depressão: Um Estudo Psicanalítico. Psicologia: Teoria e Pesquisa Out-Dez 2014, Vol. 30 n. 4, pp. 423-431